Ancestralidade, Descendência e a Memória que o Tempo Não Apaga
- Sandra Rigoni
- 20 de nov.
- 3 min de leitura
por San Rigoni

Falar de ancestralidade não é apenas mergulhar no passado, é mergulhar em nós mesmos. É entender de onde viemos, que histórias carregamos e quais cicatrizes atravessam a nossa linhagem antes mesmo de sabermos o próprio nome. Mas ancestralidade e descendência não são a mesma coisa, e compreender essa diferença transforma toda a forma como nos relacionamos com a vida, com a espiritualidade e com aquilo que deixamos para o mundo.
Descendência: a árvore que vemos
Quando falamos de descendência, falamos da nossa árvore genealógica visível: nomes, datas, sobrenomes, regiões, documentos.
Eu, por exemplo, carrego comigo o privilégio raro de ter o registro dos meus antepassados até a sétima geração.
Se eu puxo a linhagem italiana, consigo encontrar o vilarejo, o nome da rua, o número da casa, o navio que trouxeram meus familiares para o Brasil. Essas memórias estão preservadas, documentadas, registradas. É descendência. É aquilo que conseguimos provar.
Mas nem todos têm esse direito.
Quando a história é arrancada
Para grande parte do povo preto brasileiro, principalmente quem carrega a ancestralidade arrancada pela escravidão, descendência é um labirinto sem portas.
Não há sobrenomes verdadeiros, não há registros de origem, não há nomes que atravessem séculos.
O que existe, muitas vezes, é apenas o nome pós-batismo imposto pela catequização forçada: Jesus, Maria, Silva, Santos.
Como honrar aquilo que foi apagado?
Como buscar raízes que foram arrancadas antes mesmo de germinar?
No Dia da Consciência Negra, é impossível não falar disso.
É impossível celebrar ancestralidade sem lembrar de quem não pôde deixar descendência, de quem não teve o direito ao futuro, ao sobrenome, ao território, à memória.
Ancestralidade: aquilo que vive em nós, mesmo sem documentos
A ancestralidade vai além da história registrada.
Ela atravessa séculos, pulsa na nossa pele, na intuição, na forma como enxergamos o sagrado, nos saberes que despertam sem explicação.
É o espírito que retorna à Terra não para ser doutrinado, mas para ensinar, porque quem viveu 200, 400, 700 anos de caminhada espiritual não está aqui para aprender com o humano moderno, mas para nos guiar, acolher, aconselhar, corrigir e relembrar o que esquecemos.
Ancestral é quem deixou marca profunda no seu povo.
É quem viveu grandeza, sabedoria, força.
Não é qualquer espírito que volta, volta quem foi grande demais para ser apagado.
E muitos daqueles que foram silenciados, mulheres, pretos, indígenas, curandeiras, deveriam ter sido reconhecidos como ancestrais, mas não tiveram sequer o direito ao nome na lápide.
A ancestralidade das bruxas, das streghe e das curandeiras
Eu carrego comigo outra memória que também foi perseguida:
a das streghe italianas, das bruxas e curandeiras da minha linhagem.
Mulheres que aprenderam a conversar com as ervas, preparar chás, banhos, unguentos, rezas, símbolos de proteção.
Mulheres que transmitiam sabedoria pelas mãos, não pelos livros.
Mulheres acusadas, silenciadas, demonizadas, mas que não deixaram de ensinar.
Eu aprendi com os meus ancestrais a magia das plantas, a força do alecrim, o poder da arruda, o cuidado nos banhos.
E hoje, como bruxa e como descendente, reconstruo essa história com respeito e dedicação.
Resgato símbolos, preservo saberes e honro cada cicatriz que minha linhagem feminina carrega.
Porque perseguição também é ruptura de ancestralidade.
E reconstruir essa história é um ato espiritual, mas também político.
Consciência Negra é sobre ancestralidade
Quando falamos do Dia da Consciência Negra, não estamos falando apenas de resistência, estamos falando de memória.
De devolver às pessoas o direito de se reconhecerem.
De reinserir nomes, histórias, e linhagens onde o Estado, a igreja e a violência quiseram apagar tudo.
É sobre o menino preto que não sabe quem foram seus bisavós.
É sobre a mulher preta que carrega sobrenome de fazendeiro.
É sobre as famílias negras que perderam sua própria descendência por mãos que acreditavam que pele era propriedade.
É sobre reconstruir o que tentaram destruir.
Ancestralidade é responsabilidade
A ancestralidade não é só sobre quem veio antes, é sobre o que fazemos agora para que quem vem depois tenha chão para caminhar.
É sobre honrar as bruxas perseguidas.
É sobre honrar a linhagem preta que teve sua história arrancada.
É sobre honrar os povos que não tiveram o direito de existir plenamente.
É sobre honrar quem lutou, quem resistiu, quem sonhou por nós.
E é também sobre manter viva a memória dos nossos, sejam eles italianos, negros, indígenas, ciganos, bruxas, curandeiros, guerreiros ou sábios.
Porque ancestralidade é isso: um fio que nunca rompe, apenas espera ser reencontrado.
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